Reflexões sobre o uso de material para educação entre pares no Programa Saúde na Escola

Authors

  • Luciana Sepúlveda Koptcke Fundação Oswaldo Cruz – FIOCRUZ
  • Maria Regina Araújo de Vasconcelos Padrão Fundação Oswaldo Cruz – FIOCRUZ
  • Fernando Gomes da Rocha Fundação Oswaldo Cruz – FIOCRUZ
  • Izabela Caixeta Secretaria de Educação – SEEDF
  • Carla Dalbosco Hospital de Clínicas de Porto Alegre ‑ HCPA/UFRGS

DOI:

https://doi.org/10.51723/ccs.v28i02.219

Abstract

INTRODUÇÃO
O estudo trata da validação do Guia de Adolescentes de Adolescentes e Jovens para a Educação entre Pares, produzido no Programa Saúde e Prevenção nas Escolas, pela Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde. O segmento juvenil, com idade entre 15 e 29 anos, corresponde a 51,3 milhões de pessoas no Brasil, segundo o censo de 2010 realizado pelo IBGE, e grande parte encontra‑se vulnerável diante da situação de desigualdade social, racial e da violência em nosso país. Na perspectiva da
garantia de seus direitos, esta população requer a construção de políticas e iniciativas públicas sensíveis às diferentes condições de vida e de identidade juvenis, em particular no campo da saúde 1. As políticas ou ações de saúde voltadas para os jovens consideram a juventude ora sob o prisma de “problema social” ora “ de situação de risco 2” adotando enfoques de controle ou proteção, expressos no modelo biomédico de educação em saúde. A partir do final dos anos 90, ganha vulto um outro modelo para as práticas educativas em saúde que desloca a atenção da responsabilização individual e da ideia de grupo de risco para a vulnerabilidade e as condições de vida dos sujeitos. Estas abordagens, experimentadas no contexto de prevenção da Epidemia do HIV/Aids, referiam‑se a outro paradigma de atenção à saúde, com base nas Conferências e Cartas da Promoção da Saúde. A promoção da saúde propunha, desde sua origem, atividades de educação em saúde no espaço escolar, com potencial para fortalecer o processo de empoderamento sobre as condições de saúde dos sujeitos. Com a perspectiva construtivista da educação em saúde, as práticas e políticas referentes à saúde de jovens e adolescentes avançaram para além do olhar biomédico3.

A partir de 2003, o Programa Saúde e Prevenção nas Escolas (SPE) constituiu uma ação estruturada nacionalmente, em parceria interministerial, com o apoio da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – Unesco, e do Fundo das Nações Unidas para a Infância – UNICEF. Em 2007, foi instituído o Programa Saúde na Escola (PSE) por decreto presidencial 6.286 de 5 de dezembro de 2001, como instrumento de operacionalização de uma política intersetorial das pastas da saúde e da educação, visando garantir direitos de saúde e educação integrais e de qualidade de vida a crianças, adolescentes e jovens. O PSE incorporou o SPE, como parte da dimensão educativa do programa, que se dispunha a articular, de forma permanente, as comunidades escolares e as equipes de saúde da família na construção de atividades de promoção da saúde e prevenção de doenças, contribuindo para a melhoria das condições de saúde no espaço escolar. O PSE enfatizava em
suas diretrizes que a participação da comunidade escolar, em particular dos jovens, adolescentes e crianças, era de fundamental importância para a sustentabilidade e a efetividade do programa. No entanto, há pouco conhecimento sistematizado sobre as condições e efeitos desta participação.

Em 2012, a Fundação Oswaldo Cruz e a Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação celebraram um Termo de cooperação técnica, com o propósito de fortalecer a participação juvenil no PSE. O Projeto “Participação e dinamização juvenil no PSE: Implementação e Acompanhamento das Estratégias para Educação entre Pares do componente 02” buscava compreender em que medida a estratégia de educação entre pares no ambiente escolar contribui para a participação dos jovens no programa. A Metodologia entre Pares é um processo de ensino aprendizagem em que os próprios atores envolvidos são responsáveis por desenvolver ações educativas para o grupo do qual faz parte. As pessoas de um mesmo grupo (adolescentes e jovens ou professores) são os facilitadores de ações e atividades com e para seus pares 4 . A metodologia se baseia em uma linguagem de “igual para igual”, e considera como fatores primordiais o conhecimento da realidade dos colegas e da comunidade dos participantes.

Este artigo compartilha os achados do estudo de validação do material educativo “Guia Adolescentes e Jovens para a Educação entre Pares”, um recurso para a participação juvenil, a partir do qual problematizamos a contribuição da educação entre pares no contexto do programa. A proposta de validação foi uma demanda do MEC junto à Fiocruz. No ano inicial do estudo, 2013, a distribuição do material nas escolas foi suspensa, devido à pressão de parlamentares ligados às igrejas evangélicas. O Guia foi produzido pela secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, com a participação da Secretaria de educação básica do Ministério da Educação em 2009. Contou com a participação de mais de 30 jovens de todo o Brasil, reunidos junto ao Grupo de Trabalho Federal – GTF (composto por membros do MEC e do MS) para formularem de maneira colaborativa o documento que serviria para auxiliar os jovens nas ações de formação para a promoção da saúde na escola, com foco no protagonismo juvenil. Apresenta 8 temáticas: Sexualidade e saúde reprodutiva; Adolescências, juventude e participação; Metodologia de educação entre pares; Álcool e outras drogas; Raças e Etnias; Prevenção DST‑HIV‑AIDS; Gêneros; Diversidades Sexuais. Oferece diferentes ferramentas e estratégias de participação, sensibilização e discussão como oficinas, sugestões textuais, audiovisuais, etc. Concordamos com Citeli ao afirmar que

Materiais educativos são a ponta ( ) do imenso iceberg dos processos de comunicação que caracterizam a implantação das políticas públicas. Exatamente por isto são um excelente modo de acesso à prática comunicativa das instituições5.”

O estudo visou contribuir com a reflexão acerca do potencial de materiais educativos para os processos de educação em saúde na escola, com
foco na metodologia da educação entre pares.Embora seja frequente o investimento público em material instrucional e educativo em diversas mídias, não se encontra ainda uma cultura de validação, avaliação ou mesmo um plano estratégico para distribuição destes produtos, alimentando nosso profundo desconhecimento sobre como estes materiais são percebidos, significados, quais efeitos alcançam junto àqueles contextos e situações onde circulam e junto aos sujeitos que os apropriam 5 . Partimos das seguintes questões: os temas propostos são relevantes e atraem o interesse dos jovens? As informações disponíveis trazem conteúdo atualizado? A linguagem utilizada é de fácil compreensão? A realização das oficinas é viável no contexto das escolas? Que aspectos são relevantes para a formação dos jovens?

METODOLOGIA
A abordagem utilizada foi a pesquisa‑ação, integrando simultaneamente a produção de conhecimento ao objetivo de transformação de uma realidade específica. A pesquisa‑ação é implementada de forma participativa, incluindo ativamente os atores que integram o contexto em estudo 6 . O processo de validação do guia resultou de um trabalho contínuo envolvendo os estudantes selecionados nas escolas para atuar como dinamizadores no projeto, os profissionais de educação e saúde dos territórios e os demais jovens na escola que participaram das oficinas.

O estudo foi multicêntrico com uma amostra por conveniência de 10 escolas públicas estaduais e municipais, de ensino fundamental e de ensino médio, distribuídas em capitais das cinco regiões do país: Brasília‑DF, Manaus‑AM, Porto Alegre ‑RS, Recife‑PE e Rio de Janeiro‑RJ. Junto à equipe de pesquisa, participaram 20 dinamizadores jovens do ensino médio, sendo 2 adolescentes por escola. Além destes, outros 280 jovens, integrantes das séries finais do ensino fundamental e ensino médio aderiram às atividades propostas.

Ademais, as escolas deveriam fazer parte do PSE. Posteriormente, cada centro de pesquisa agregou outros critérios específicos pertinentes à realidade local, como índices de violência e vulnerabilidade social do bairro e a existência prévia de iniciativas de participação juvenil. A identificação das escolas foi feita com a colaboração das Secretarias Estaduais e Municipais de Educação.


Instrumentos
O principal instrumento foi o próprio Guia “Adolescentes e Jovens para a Educação entre Pares” 4 . Foram realizadas entrevistas semi‑estruturadas com atores estratégicos da escola e produzidos registros em diários de campo.

Aspectos Éticos

O Projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto Oswaldo Cruz segundo o parecer consubstanciado Nº 625.345 de 17 de abril de 2014. A pesquisa também foi autorizada pelas Secretarias Municipais e Estaduais de Saúde e Educação dos municípios participantes.

Etapas do projeto:
‑ Etapa 1 – Mapeamento de Grupos e Ações: diagnóstico situacional das instituições escolares, sua participação no PSE e ações intersetoriais implementadas entre saúde e educação no território. Também foram analisadas ações de protagonismo e participação juvenil já previstas no projeto político pedagógico das escolas.

‑ Etapa 2 ‑ Estratégias de mobilização: diferentes estratégias metodológicas locais para fomentar a participação e engajamento das escolas no projeto, tais como: apresentações do projeto para atores da comunidade escolar, divulgação do projeto em salas de aula, pactuação da agenda e conteúdo de acordo com as demandas de cada escola.

‑ Etapa 3 ‑ Seleção e formação de estudantes: dois adolescentes de cada escola participante foram formados como dinamizadores, a partir da apropriação do material do guia e sua leitura crítica. Todo o processo foi conduzido e supervisionado pela equipe de pesquisa, em um espaço coletivo de aprendizado.

‑ Etapa 4 ‑ Realização das oficinas: os jovens dinamizadores implementaram as oficinas vivenciais com os adolescentes das escolas para avaliar as potencialidades do guia de educação entre pares.
Análise dos Dados ‑ Leitura inicial do guia, pela equipe, identificando objetivos, conteúdo e linguagem. Posteriormente, foram observadas a relevância, atualidade, facilidade de leitura e interesse dos temas propostos, com base nas oficinas. Analisamos a recepção do material e a real possibilidade de execução das atividades.

RESULTADOS

Entre julho de 2013 e dezembro de 2014, foram realizadas 99 oficinas em 10 escolas brasileiras, com destaque para a região sul que, devido ao apoio das equipes pedagógica e de saúde de referência, realizou 45 oficinas previstas nos sete fascículos do guia. O Distrito Federal realizou 14 oficinas, Rio de Janeiro, 21 e Manaus, 19.

O fator PSE ‑ As escolas participantes encontravam‑se em momentos diferentes de implantação do PSE. Algumas instituições já contavam com uma parceria consolidada com a área de saúde e desenvolviam atividades participativas com os alunos, inclusive oficinas sobre temas ligados à prevenção e promoção à saúde. Em outras escolas,
apesar do PSE estar presente, as ações da equipe de saúde ficavam restritas à avaliação clínica e a implementação do componente II do programa era ainda incipiente. Observamos a correlação entre os arranjos e processos para a atuação dos jovens nas escolas e a situação de implantação e implementação do programa. Em contrapartida, o projeto foi mencionado por um profissional da educação como fator de fortalecimento do PSE na escola.

Recrutamento e participação ‑ Cada equipe estadual desenvolveu processos específicos para a escolha dos fascículos a serem trabalhados, sempre privilegiando a participação dos estudantes nessas escolhas. Todos os fascículos foram utilizados em pelo menos uma Unidade da Federação. Nas escolas, diferentes grupos se envolveram no processo de validação do Guia. Em alguns casos, participaram os representantes de turma e de grêmios estudantis, em outras, o Guia foi validado junto a grupos já formados que participavam de projetos semelhantes ao nosso, dentro da escola. Nestes casos, buscou‑se agregar esforços e integrar o projeto com as ações de educação em saúde já realizadas nas escolas, incentivando o protagonismo do Jovem. Em apenas uma das 10 escolas, a participação dos estudantes foi definida
pela Direção da escola, utilizando critérios como comportamento, assiduidade, notas e desempenho. A utilização destes critérios talvez explique, em parte, a falta de interesse nas ações do PSE, observada neste caso.

Formação de dinamizadores ‑ Na maioria das vezes, as oficinas foram conduzidas pelos dinamizadores jovens apoiados pelos dinamizadores do ensino médio, após um processo de formação prévio à realização das oficinas. A formação foi fundamental para o alinhamento conceitual, pois, em muitos casos, os adolescentes encontravam dificuldade no entendimento de termos técnicos utilizados no guia.

Os espaços disponíveis ‑ A oficinas sobre os fascículos temáticos ocorreram, em sua maioria, em espaços não‑formais na escola onde, em geral, não há obrigatoriedade de participação ou avaliação “para a nota”. Alguns foram realizados junto à disciplina de Parte diversificada – PD, prevista na Lei de Diretrizes e Bases como conteúdo ‘complementar’ e transversal, tendo a escola autonomia para definir os temas de estudo. Em Manaus e no DF, verificou ‑se a articulação com a PD, com destaque para o Projeto Viva +, atividades de educação em saúde já desenvolvidas há mais de 15 anos na comunidade escolar. Já em Porto Alegre, os Projetos Trajetórias Criativas e o projeto Galera Curtição eram espaços não formais, assim como no Rio de Janeiro, o Projeto sem Vergonha e o Projeto Elos da Cidadania. Também ocorreram fora da escola, nas instituições responsáveis e parceiras ‑ Universidades e Fiocruz. Os dias letivos temáticos também oferecem espaços propícios para a realização dessas ações, pois permitem a inserção de novos temas nas agendas da escola, ainda que em ações pontuais. A Semana de Educação para a Vida, por exemplo, é uma semana pedagógica garantida nos calendários escolares no território nacional, onde a escola abre seus muros para articulação com parcerias externas (saúde, segurança, movimentos sociais, etc). No DF, nesta semana (ocorrida em maio de 2014) as duas escolas do projeto disponibilizaram todo o espaço para realização de atividades propostas pelos jovens educadores do projeto. No RJ, as ações de prevenção e sexualidade foram realizadas no Dia Mundial da AIDS, por exemplo. Em Porto Alegre, foram realizadas oficinas nas semanas das Feira de Ciências e Cultura. Estrutura física das escolas- Poucas possuíam salas adaptadas para atividades de caráter participativo, aparelhadas com materiais pedagógicos.

Despreparo dos professores - Em geral, educadores relatam carecer de capacitação para abordar determinados temas, sobretudo aqueles considerados mais polêmicos:

“Sexualidades e Saúde Reprodutiva”: Calorosas discussões nos grupos, reiterando a necessidade desse debate junto à comunidade escolar diante do preconceito e da falta de informação. Houve relatos de que meninas que engravidam acabam abandonando a escola por conta da falta de acolhimento e sensibilidade da escola e que a homofobia tem cerceado os afetos entre as meninas em espaços públicos que, por isso, têm evitado andar de mãos dadas com as amigas e até mesmo com parentes, pois têm medo de serem rotuladas como lésbicas. Os jovens problematizaram a noção de sexualidade para além da saúde reprodutiva e revelaram discursos calcados no machismo e na intolerância religiosa no que se refere à diversidade sexual. O material criou condições propícias para trabalhar a desconstrução de preconceitos. Os jovens apontaram a necessidade de buscar materiais de apoio com informações mais atuais.

“Adolescências – Juventudes e Participação”: as atividades provocaram a reflexão sobre a participação do jovem na escola e na sociedade, por meio da criação de espaços de diálogo, sem controle adulto. Discutiram as perspectivas e expectativas do grupo em relação à Escola, oportunidade percebida como rara ou inexistente, pelos educandos. Questionamentos sobre a importância do reconhecimento da diversidade juvenil, “pois um jovem de 15 anos criado na cidade de São Paulo não terá a mesma adolescência de um jovem, da mesma idade, vivendo no sertão do Piauí 6". O adultocentrismo que reforça os estigmas da juventude como grupos baderneiros
e que não devem ser levados a sério, nas palavras de uma das dinamizadoras “vistos como rebeldes sem causa” 6 .

“Metodologias”: trata da formação de jovens e adolescentes para atuarem como educadores junto a seus pares. Apresenta linguagem complexa e de
difícil apropriação por parte dos jovens estudantes

“(...) para nossa surpresa, disseram que o fascículo tem uma linguagem complexa, os conceitos são estranhos à elas e por isso elas acharam difícil, mas salientaram que o Curso de Formação tem ajudado a entender o material” 6 .

“Álcool e Outras Drogas”: Foi ressaltada a necessidade de aprofundar a discussão sobre a redução de danos e sobre a criminalização das drogas, ainda pouco compreendidas pelos jovens estudantes. Foram feitas adaptações para dar foco em substâncias entendidas como prioritárias de se enfrentar, como o crack (em Porto Alegre) e o álcool (Brasília, Rio de Janeiro). Tangenciou‑se, também, discussões sobre a violência associada ao tráfico de drogas, presente no contexto de muitas escolas participantes. O fascículo também contribuiu para a criação de uma Gincana intitulada “Passa ou Repassa da Saúde”, mobilizando novas ações.
Segundo a dinamizadora estudante de Brasília, “ (...) os alunos já estão cansados de palestras e discursos de repressão, o melhor é informar e trabalhar na autoestima de cada um, respeitando a sua autonomia” 6 .

Outro aspecto levantado foi a dificuldade de envolver a família na discussão e a dificuldade de acolher as demandas dos jovens.

“(...) esse assunto não é debatido na sociedade, as informações são muito rasas e cobertas de preconceitos. A sociedade tem que se abrir mais, começar a discutir sobre o assunto para poderem cobrar um posicionamento mais correto dos políticos” 6 .

“Raças e Etnias”: Suscitou interesse. Foi levantada, em Manaus, a necessidade de incluir as particularidades regionais, como os processos discriminatórios contra a população indígena. O tema foi considerado um dos mais interessantes pelos estudantes participantes do projeto “Houve uma ótima discussão entre pares
e todos os estudantes participaram (...). Na minha percepção, mesmo que a reflexão dos estudantes não fora tão aprofundada, esta foi uma das oficinas mais participativas e, creio eu, que isso se deve pela metodologia da roda, pela primeira vez aplicada no espaço.” 6

“Prevenção das DST: HIV e Aids”: Interesse dos jovens na utilização de modelos de pênis e vagina de silicone como materiais de apoio, além de preservativos masculinos e femininos, todavia, não se encontra este tipo de material nas escolas. Desconhecimento da técnica para a colocação ‑ e também da existência do preservativo feminino ‑ tanto entre os adolescentes como entre os adultos que participaram da atividade. Muitos professores também relataram “não saber usar”; apontando para uma insuficiência das campanhas educativas, divulgação e distribuição desses preservativos pelo Serviço de Saúde. O tema HIV/AIDS se encontra “saturado” na escola, no entanto, a temática é de interesse dos jovens. As medidas profiláticas em relação à exposição ao vírus e do tratamento do HIV/AIDS; o PREP ‑ Profilaxia Pré ‑Exposição e o PEP‑ Profilaxia Pós‑Exposição (PEP), não eram conhecidas pelos jovens.

“Gêneros”: Nos espaços escolares, os estudantes não se sentem respeitados com relação à sua orientação sexual ou à sua identidade de gênero. Percebe‑se sua exclusão e invisibilidade neste ambiente. Como efeito, abandonam os estudos, outros (as) são vítimas de desrespeito e violência na própria escola. Faltam espaços de orientação e discussão a respeito deste tema. Uma das oficinas de maior expressividade foi sobre violências motivadas por questões de gênero (Uma história
de desamor), com ênfase para a violência contra a mulher. Estereótipos também influenciaram na dinâmica “O que mais atrapalhou foi o machismo dos guris, eles não respeitavam as gurias que queriam ler um texto, falar alguma coisa legal. Era só a gente abrir a boca pra falar e eles já vinham com as piadinhas machistas deles6.” 

A estratégia: As oficinas mostraram a importância de se trabalhar esses conceitos na escola de forma lúdica e transversal, para que a discussão seja inclusiva e respeitosa. Foi possível observar que a estratégia de abordar o assunto é tão importante quanto os temas assim como a importância da mediação “O documentário foi como um pé na porta para falar de gênero, as dinamizadoras ficaram bem chocadas com as informações e, ao mesmo tempo, impressionadas com as culturas retratadas. Apesar de abordarem outras culturas, as dinamizadoras conseguiram encontrar práticas do patriarcado convergentes na nossa cultura6."

DISCUSSÃO
O tema das DTS‑AIDS, em geral, não é abordado nos materiais educativos com enfoque amplo, não contempla a sexualidade, o gênero, a saúde reprodutiva, a família e outros aspectos que interferem na vulnerabilização individual e social dos adolescentes e jovens3. O Guia, de enfoque temático abrangente, pode ser caracterizado como
um material construtivista, em sintonia com as demandas dos usuários, que busca contribuir para a autonomia dos jovens na tomada de decisão, com foco na transformação de dada realidade.

Materiais de natureza construtivista devem “ (...) facilitar a produção de sentidos compartilhados e estimular o debate entre os atores sociais, com destaque para o entendimento da comunicação como instância de disputas e negociação de interesses (...)” 5.

Todavia, o Guia apresentou, como primeiro desafio, a dificuldade de leitura, escrita e interpretação manifesta pelos jovens. Esta dificuldade nos remete a problemas estruturais da educação básica no Brasil, por um lado, e sugere, por outro, à necessidade de revisão da linguagem utilizada e à incorporação de estudos de recepção junto aos leitores a quem se destinam. Ainda no que toca a facilidade de leitura dos fascículos, cabe enfatizar a natureza controversa dos temas abordados, muitas vezes envolvidos em estigma e preconceito manifestos pelos próprios jovens. Neste sentido, a pesquisa indica que a despeito da pretensão autodidata do material, é importante prever uma estratégia de formação voltada para os “leitores educadores”, de modo a fortalecer sua capacidade de reflexão e interpretação sobre as informações oferecidas pelo material. Em algumas oficinas, os jovens mencionaram a importância da presença de profissionais de saúde, pois possibilita acesso a informações e conhecimentos específicos a exemplo da explicação sobre carga viral. O desejo de obter informação e conteúdo específico de especialistas foi uma situação encontrada em outros estudos. Lindsey 7 , Frankham 8 e Price & Knibbs 9 afirmam que nem sempre os jovens percebem seus pares como fontes credíveis.

Surge, então, a necessidade de identificar espaços e atores capazes de mediar esta formação dentro da escola. As oficinas propostas pelo Guia, nas 10 escolas, encontraram contextos internos diferentes nas cinco regiões do país. Algumas escolas apresentaram condições favoráveis e espaços potenciais para esta formação, como a existência de projetos anteriores desenvolvidos na disciplina de Parte diversificada ou em espaços de educação não‑formal, a partir de parcerias externas com Universidades, organizações da sociedade civil, Nações Unidas ou ainda iniciativas promovidas pelo setor saúde. Outro fator interveniente foi o contexto de implementação do PSE, em cada escola. Observamos, no processo de aproximação junto às escolas, que as mudanças de gestão do PSE, seja no âmbito da escola, seja nas unidades de saúde, representam um desafio à continuidade do programa. Neste sentido, o projeto contribuiu para relançar o PSE, aproximando os atores locais:

“Este projeto da Fiocruz vai unir a comunidade, principalmente quem ainda não se conhece e poderia trabalhar junto” 6 .

O estudo possibilitou abordar estes diferentes “contextos de circulação e apropriação dos materiais, uma vez que estes são determinantes para os sentidos que as pessoas atribuem aos textos oferecidos” 5 . Por outro lado, em outras escolas, foi difícil encontrar o espaço para realizar as oficinas.

Logo, nos parece plausível sugerir que a educação em saúde de enfoque construtivista, em particular a educação entre pares é melhor acolhida e tem maiores chances de continuidade nas escolas onde já existam experiências anteriores e espaços disponíveis. Neste caso, os projetos que articulavam espaços‑tempos formal e o não formal serviram como base para a formação e realização das oficinas. A sala de aula, locus privilegiado da ação educativa formal, se mostrou mais resistente em acolher iniciativas de atuação dos jovens como educadores. A reflexão a respeito de espaços disponíveis na escola para atividades de educação entre pares vai além do espaço físico. O espaço pode ser construído sem uma sala, ou paredes, janelas e portas. A ideia de que educação entre pares seja um espaço de participação e partilha de poder implica em relações educacionais mais horizontais e dialógicas. Percebemos, porém, que as escolas, no geral, não preveem espaços‑tempos disponíveis para a realização de atividades que não estejam atreladas diretamente à base nacional do currículo ou garantidas pelo Plano Político Pedagógico.


Como afirma Juarez Dayrel em seu artigo “A escola como espaço sociocultural”, a arquitetura da escola não é neutra nas múltiplas dimensões educativas do espaço escolar:
“... A arquitetura e a ocupação do espaço físico não são neutras. Desde a forma da construção até a localização dos espaços, tudo é delimitado formalmente, segundo princípios racionais, que expressam uma expectativa de comportamento dos seus usuários. Nesse sentido a arquitetura escolar interfere na forma da circulação das pessoas, na definição das funções para cada local. Salas, corredores, cantina, pátio, salas dos professores, cada um destes locais tem uma função definida a priori. O espaço arquitetônico da escola expressa uma determinada concepção educativa...” 10 .

A partir da problematização da implementação de políticas participativas de saúde na escola em projetos anteriores 11 assim como no presente estudo, diagnosticamos, dentre outros fatores, a importância de situar a participação juvenil no espaço escolar e nos serviços de saúde na perspectiva das relações intergeracionais e dos papéis e poderes socialmente atribuídos e delegados no cotidiano das relações educativas. A participação juvenil encontra dificuldades diante da não apropriação ou da inexistência, de fato, de arenas públicas, ou espaços, sejam eles formais ou informais de negociação com os “adultos” e outros jovens.

Tais espaços, embora muitas vezes presentes nos modelos de governança da escola (representação de alunos, grêmios, representantes de classe) não são identificados ou apropriados e, quando o são, acabam por constituir espaços segregados de liberdade “concedida”, porém sem real possibilidade de diálogo ou deliberação solidária entre jovens e adultos. A presença dos profissionais nas atividades de validação do Guia se mostrou, de forma geral, um fator impeditivo de participação dos jovens, que alegavam se sentirem “intimidados”, “desconfortáveis” por partilharem opiniões e pensamentos que sentem serem limitados nos espaços cotidianos da escola.

O Guia, embora apresente necessidade de atualizar alguns temas, constituiu um dispositivo relacional diferenciado, oferecendo um novo espaço de simbólico dentro da instituição, com potencial de promover reflexão e diálogo entre os jovens protagonizada pelos próprios adolescentes. Além de construção do conhecimento de forma mais horizontal, este recurso conseguiu atingir mudanças atitudinais, a exemplo da estratégia adotada para a formação de dinamizadores pautada no fascículo sobre gênero, que se mostrou eficaz na desconstrução de preconceitos e na reflexão sobre os processos de socialização que determinam tais relações.

Por outro lado, a referência dos adolescentes sobre a “saturação” de alguns temas por excesso de informação, como por exemplo, HIV/AIDS, denota mais uma crítica à abordagem tradicional proibicionista e culpabilizadora, do que ao tema em particular. Entre 2005 e 2015, a taxa de detecção de casos de AIDS entre homens de 15 a 19 anos triplicou no país (de 2,1 para 6,7 casos por 100 mil/habitantes) 12 , sugerindo necessidade de novas estratégias educacionais. Para Knauth e Gonçalves 13 , apesar dos jovens terem acesso ao conhecimento sobre HIV e sua transmissão, principalmente via a escola e a mídia, ainda é difícil identificar mudanças de comportamento no nível em que seria desejado pelas políticas públicas. O modelo de prevenção biomédico dominante, que se fundamenta no repasse de informações e no conceito de risco, contribui para a saturação de um discurso ainda muito focado apenas no uso do preservativo. Neste sentido, as ideias de Ayres 14 são atuais e trazem uma perspectiva interessante, ao dizer que “prevenção não se ensina”. Para ele, o aprendizado é um encontro educativo entre dois sujeitos e é nesta mútua presença que é construído o objeto de aprendizado. Outros estudos apontaram que processos formativos em saúde junto aos jovens obtêm êxito quando enfatizam a qualidade da relação entre jovem e adulto e entre jovens 15 .

A perspectiva da educação entre pares pode gerar participação e o Guia funciona como suporte para apoiar tais resultados, desde que se considere o contexto, o espaço e o tempo adequados para sua utilização e frente a eventuais situações de conflito.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pouco se tem avançado teoricamente nas análises sobre a produção e o uso de recursos educativos e suas relações com as concepções educativas preventivas 3 .
A abordagem construtivista da educação em saúde nas escolas, em particular a educação entre pares, se deparam com a rigidez da estrutura escolar, onde há pouco espaço para a participação juvenil. Foi importante conhecer as escolas, a comunidade e sua cultura, de modo a construir estratégias locais para interagir com as relações e espaços de poder existentes. O estudo de validação sugere que a despeito do potencial do Guia, é necessária uma abordagem compreensiva, com ênfase na recepção e nos contextos de leitura do material, de modo a promover relações qualitativamente diferenciadas que sustentem propostas mais participativas de educação em saúde.

 

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Luciana Sepúlveda Koptcke, Fundação Oswaldo Cruz – FIOCRUZ

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Maria Regina Araújo de Vasconcelos Padrão, Fundação Oswaldo Cruz – FIOCRUZ

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Fernando Gomes da Rocha, Fundação Oswaldo Cruz – FIOCRUZ

Fundação Oswaldo Cruz – FIOCRUZ

Izabela Caixeta, Secretaria de Educação – SEEDF

Secretaria de Educação – SEEDF

Carla Dalbosco, Hospital de Clínicas de Porto Alegre ‑ HCPA/UFRGS

Hospital de Clínicas de Porto Alegre ‑ HCPA/UFRGS

References

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v15n1/04.pdf.

Published

2018-05-24

How to Cite

1.
Koptcke LS, Padrão MRA de V, da Rocha FG, Caixeta I, Dalbosco C. Reflexões sobre o uso de material para educação entre pares no Programa Saúde na Escola. Com. Ciências Saúde [Internet]. 2018 May 24 [cited 2024 Jul. 3];28(02). Available from: https://revistaccs.escs.edu.br/index.php/comunicacaoemcienciasdasaude/article/view/219

Issue

Section

Educação